terça-feira, 16 de junho de 2009

Cante lá que eu canto cá

Uso propositadamente como título desse comentário o mesmo nome da antologia organizada pelo autor para dizer que petendo menos uma análise que uma louvorosa afirmação da excelência do miraculoso poeta que faria cem anos em 2009.
Fenômeno hoje estudado na Sourbonne, os poemas de Patativa são a máxima expressão de uma sensibilidade específica: a do sertanejo da região do Cariri. O reconhecimento e a legitimação de uma poética natural imanente no caboclo.
Patativa relaciona-se com sua realidade de maneira tão intensa e criativa que dela recebe pronta a matéria de sua lírica, restando-lhe brilhantemente interpretá-la. Patativa foi lavrador e pai de nove filhos e viveu até noventa e três anos.
Como para Manoel de Barros a poesia é para Patativa um dom divino: “não tenho estudo nem arte / minha poesia faz parte / das obras da criação”. E é a divindade que lhe confere, pela relação com a terra, sua sapiência e até mesmo a consciência conceitual da própria poesia: “seu verso é uma mistura / é um tá sarapaté / que tem pouca leitura”, e consciência da piração do processo criativo: "canto as fulô e os obróio / com todas as coisas daqui / pra toda parte que eu óio / vejo um verso se buli / se as vez andando no vale / atrás de cura meus male / quero repará pra serra / assim eu óio pra cima / vejo um diluvi de rima / caindo em cima da terra”. A própria figura de Jesus é colocada como arquétipo primordial do matuto.
O Diabo é tão presente e interferente quanto Deus.
Repleta de elipses temáticas onde uma coisa convulsivamente chama outra atravessando o espaço-tempo a poética patativiana tem consonância com a liberdade modernista apesar de seu rigor formal de métrica precisa. É também de aspecto modernista a ironização presente em alguns poemas: “fuma o seu cigarro manso / bem perfumado e sadio / já eu aqui tive a sorte / de fuma cigarro forte / feito de paia de mio”.
A obra de Patativa é louvor e denúncia da desinformação, onde o sertanejo através de sua ignorância, ora científica, ora política, ora religiosa, é incapaz de compreender o que lhe oprime e ao mesmo tempo torna-se sublime pela simplicidade. O poeta oferece a seus leitores um verdadeiro mapa da mina da vida cabocla. A experiência sertaneja surge como experiência complexa do corpo pelos sentidos.
Existem figuras bastante recorrentes em Patativa. Uma delas, a família, é posta como antídoto a dor inerente à vida no sertão. A frustração do projeto familiar representa a danação irreversível do sujeito.
A existência de Patativa é um libelo contra a irreversibilidade.
Profícuo contador de histórias o poeta possui uma sucinta coerência narrativa. Mais que um fim moral evidente estas histórias são descrições de processos existenciais reveladores.
Mesmo o que parece prozaico em Patativa é absolvido pelo seu iletramento, que reivindica para o sertanejo “o sagrado direito de pensar”. É interessante que o poeta apresente uma poética onde o cânone ocidental não penetrou.
Quase toda imagem poética de Patativa tem a fisicalidade de uma paisagem natural. Seu amor a terra é tamanho que lhe convence à entrega do próprio corpo: “não dou cavaco de morrer / somente por conhecê / que há tempo tá reservado / in tu meu querido sertão, / o meu quadrinho de chão / pra nele eu sê sipurtado”. Serra de Santana é vital para o poeta.
A rima de Patativa não é facilidata por nenhuma obviedade. É extraordinária a originalidade da linguagem dentro de si mesma. Há rimas - e importa falar de rimas por ser um dos pilares dessa poética - extraordinárias: “marmota” com “jeans HJ”; “conteúdo” com barrigudo”; “raio” com “papagaio”.
A delimitação temática proposta pelo autor não diminui o valor do conjunto da obra pela perícia de uma análise extensa sobre cada um de seus temas. A exemplo de Florbela Espanca, que encontra em seu mundo próprio a representação completa do mundo exterior. Patativa parece abarcar quase tudo sobre seus temas, além de encontrar para eles significados comuns.
Patativa acredita numa ética universal contra a qual se opõe a riqueza. Para ele a má distribuição de renda é anti-religiosa e inaceitável, assim como a religião utilizada como ópio também o é.
O poeta sempre se dirige aos doutos numa consciência histórico-social de sua poesia. Está muito bem colocada a distância moral entre campo e “praça” (como ele denomina o espaço urbano). Patativa tem um senso comunitário hiper-desenvolvido. Aqui está o cerne de seu interesse descritivo do campo aos senhores citadinos. A natureza existe como saber alternativo que “qualquer um pode estudá sem sabe o ABC”. “Cante lá que eu canto cá”
A beleza feminina aqui é atributo santo tendo sua imagem análoga a dos ídolos cristãos.
As raras imagens recorrentes nessa obra, “vida de cativo”, “cova fria”, localizam radicalmente o trabalhador rural como o “matuto agricutô / que trabaia até morrê / pro mundo intero comê / mas ninguém lhe dá valô”, para quem a morte serve como confirmação do sofrimento ao libertar o sujeito de sua terrível sentença.
A poética de Patativa apóia-se em oposições extremas que geram através de conflitos constantes sua discursividade característica.
Em seus momentos de auto-definição o autor diz-se “poeta da mão grosssa”, "poeta predestinado", “velho do coração novo”.
Ele foi um (imagem constante em seus poemas, assim como nos de Orides Fontela) pássaro.

2 comentários:

  1. Seu canto cá é um sabiá
    que sabe versejar.

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  2. Assim foi esse sabio passaro...metrificado como a canção arida das "raizes de pedra ou de cabra"

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